A traição feminina ganha cada vez mais destaque na mídia, em consultórios psicoterápicos e conversas de meninas e mulheres. O que há algum tempo era um tabu, segredado em alcovas ou nos círculos restritos de amigos, quase sempre com comentários desaprovadores, hoje é tema escancarado na TV, com olhares cúmplices, invejosos e até compreensivos.
Desde a série A Vida Como Ela É, baseada na obra de Nélson Rodrigues, o tema da infidelidade feminina não era tão comentado e veiculado na telinha. Na novela das oito da Rede Globo, A Favorita,por exemplo, não faltam casos de mulheres que não abrem mão do prazer, encarando sem medo as relações triangulares.
É o caso da personagem Dedina (Helena Ranaldi), que, apesar de ser casada com Elias (Leonardo Medeiros), teve um caso com Damião (Malvino Salvador). Descoberta, e uma vez perdoada, voltou a trair e foi expulsa de casa a bofetadas, pelo marido, no capítulo exibido na última quinta.
Os exemplos são fartos. Personagem de Claudia Ohana na mesma novela, a caminhoneira Cida teve um caso com o cunhado Átila (Chico Diaz), marido da irmã Lorena (Gisele Fróes). E Diva (Giulia Gam), que nos anos 80 se envolveu com Augusto César (José Mayer) e o próprio Elias (Leonardo Medeiros), quando engravidou, preferiu não revelar quem era o pai da criança e fugiu com um argentino. Os que sobraram assumiram, juntos, a paternidade.
E, ao que tudo indica, coroando o folhetim da Globo, a recatada Catarina (Lilia Cabral) vai trair o machista Leonardo (Jackson Antunes) pela bela Stela (Paula Burlamaqui), que sofre preconceitos por ser homossexual. Trata-se de um tempo que guarda suas devidas diferenças com o universo recatado do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, no qual se baseia a minissérie Capitu.
TRAGICOMÉDIA – Não se pode falar em traição feminina na ficção sem citar a definitiva Capitu, sobre a qual paira a dúvida de ter mantido um relacionamento com Escobar, o melhor amigo do marido, Bentinho. Com narrativa ambígua, o romance de Machado, que chega à telinha amanhã, na adaptação de Luiz Fernando Carvalho, apresenta o atormentado Dom Casmurro, alcunha de Bentinho quando envelhece, que deixa para o leitor a dúvida sobre a traição.
Na minissérie, que terá cinco episódios, a diretor mantém a dúvida e a associa ao processo cultural da modernidade. “Fui atrás das coordenadas mais latentes, que têm muito a ver com a questão da passagem do tempo, da consciência da finitude das coisas e do trágico também. Busquei a tragicomédia de uma dúvida, do que ela provoca em termos de imaginação”, conta Carvalho.
Ele não fez uma simples reconstituição de época. Inicialmente, pensou em gravar a ação nas ruas do Rio de Janeiro dos dias atuais. Porém, a inviabilidade de custo para esse formato de produção o levou a criar em um novo conceito. O livro foi então repensado dentro de um formato operístico, moderno e não-realista
O elenco da série – integrado, entre outros, por César Cardadeiro e Michel Melamed, no papel de Bento em diferentes idades; Letícia Persiles e Maria Fernanda Cândido como Capitu –, além das equipes de criação, participou de oficinas teóricas com profissionais da área de psicanálise, história e comunicação.
Para a psicanalista Maria Rita Kehl, o personagem é um homem inseguro da sua masculinidade. “O que é realmente enigmático para Bentinho é a sua sexualidade. Ele não sabe o que Capitu viu nele, do que ela se enamorou. E, a partir daí, a sexualidade dela passa a ser muito ameaçadora”, diz.
A médica, sexóloga, psicanlista e psicoterapeuta baiana Kleyde Lopes também reforça esta teoria: “Muito homem que não tem segurança de sua identidade sexual cria uma situação de desconfiança com a parceira para fugir do autoconhecimento sobre seu desejo”.
Ela também diz que é comum no homem ou na mulher infiel acusar a (o) parceira (o) de traição, projetando o desejo que é dele (a). “As mulheres hoje estão assumindo o direito de trair, direito este que era patrimônio masculino. O que acontece agora é que elas estão fazendo isso com mais freqüência e tranqüilidade”.
Para ela, o homem traído se sente muito diminuído e com a sexualidade afetada. “Eles tentam justificar que a traição ocorreu por interesse financeiro, mas, muitas vezes, a mulher que trai até banca o amante do ponto de vista econômico”, conclui.
RELATIVIDADE – Para o antropólogo Roberto Albergaria, “a tradicional idéia de traição ou de infidelidade tende a entrar no museu das formas de vida dos nossos avós”. Na sua opinião, “hoje é uma categoria social em extinção, que deve ser relativizada dentro do novo contexto sociocultural em que vivemos”.
Analista da pós-modernidade e das relações sociais, ele complementa que “o ideal da fidelidade extremada, um subproduto do complexo do amor romântico, do familismo católicão, revelou-se irrealista, transformando-se num estorvo ao afã de liberdade (especialmente feminina) que move nossas cabeças no mundo individualista”.
Para Albergaria, a chamada traição terminou perdendo seu sentido e charme transgressivo na medida em que se generalizou. “Ou que se democratizou com a entrada em massa das mulheres já liberadas no mercado sexual. Esvaziou-se pela própria redefinição dos nossos pactos conjugais (implícitos ou explícitos) atuais”.
“Nossos pactos não são mais de exclusividade permanente como os de outrora. São mais de afeto, cumplicidade ou, no máximo, de segurança sanitária (a Aids). Frutos de relacionamentos que já nascem conscientes da sua essencial impermanência dos nossos desejos. Relações que se estabelecem através de ajustes contínuos, de propostas condicionais”, diz .
“Mil tipos de alianças, sempre precárias, nesses tempos de amores líquidos que são os nossos. Que fazem parte do surgimento gradual de novas formas de arranjos sexuais/parentais definidas não pelo costume, mas pelos interesses individuais, que não cabem mais no modelo tradicional do pacto conjugal pré-determinado e imutável.
Para Albergaria, a multiplicação do “troca-troca”, dos “revezamentos”, das “terceirizações” (cada vez mais aceleradas) está fazendo com que a própria palavra traição esvazie seu sentido. Da mesma forma que o próprio ato de trair vai perdendo sua carga dramática.
Capitu De Luiz Fernando Carvalho Com Maria Fernanda Cândido e Michel Melamed Estréia terça, 9 Globo, 22h55
ANALISTAS SE DEBRUÇAM SOBRE INFIDELIDADE ENQUANTO FENÔMENO SOCIAL
Enquanto o antropólogo Roberto Albergaria acha que a traição perdeu o charme transgressivo à medida que se generalizou, o sociólogo Gey Espinheira acredita que o casamento é uma instituição declinante e a traição deixa de ter a conotação pérfida para ser uma afirmação do Eu feminino que se recusa a continuar a pertencer a um só homem.
Gey sinaliza que as mulheres vêm experimentando ser o que elas são com outro ou outros, sempre que a ocasião lhe facultar a aventura existencial. “Portanto, afirmação de sua vontade de potência, da liberdade que a pós-modernidade valoriza na alta invidualidade, que é a marca de nosso tempo”, analisa.
Espinheira chama a atenção para a compreensão da nossa sociedade em sua disritmia, “ou seja, os diferentes tempos que se encontram no presente”. E complementa: “Temos ainda presente grupos tradicionais, presos a valores comunitários de família e vizinhança, estruturados por relação mecânica de proximidade e conhecimento mútuo, em que as pessoas se fiscalizam reciprocamente”.
“Mas temos, por outro lado, pessoas que pertencem de fato à pós-modernidade, sociedade quase anônima em termos de comunhão de valores, constituindo uma sociedade orgânica de interdependência funcional e não emocional. Eis um primeiro quadro, mas há algo que foge quase sempre aos padrões, e a traição é um deles”.
Ele lembra que, nas sociedades de corte, como a de Versailles, a instituição do amante era generalizada, tanto de um lado como de outro. “A traição era um jogo e, na literatura de Nelson Rodrigues, este é um tema central. E agora em que se comemora o centenário de Machado de Assis, o caso mais sintomático é o de Capitu. Nas classes ociosas – a burguesia –, sexo é esporte, e por burguesia entenda-se tanto a classe média como a alta, mas a traição não é exclusividade dessas classes”.
E de onde vem, então, o suposto tabu sobre a traição feminina? Para Gey, da idéia da mulher como uma propriedade. À medida que esta apropriação declina, o que era privilégio dos homens é também incorporado pelas mulheres.
E Albergaria complementa: “Certamente, com a desconstrução da lógica simbólica da traição, as mulheres de hoje ganharam muito em liberdade e agilidade. Mas perderam algo em ardileza, nas artes do parecer (do fazer-se ‘santa puta’, no estratégico dom de iludir”.
“Por isso nossas avós, quando jovenzinhas e sonsinhas, eram mulheres tão graciosas com seus mistérios... Superiores em atratividade às ‘bad girls’ americanizadas que apareceram no momento da liberação sexual”, diz.
Do A TARDE
Desde a série A Vida Como Ela É, baseada na obra de Nélson Rodrigues, o tema da infidelidade feminina não era tão comentado e veiculado na telinha. Na novela das oito da Rede Globo, A Favorita,por exemplo, não faltam casos de mulheres que não abrem mão do prazer, encarando sem medo as relações triangulares.
É o caso da personagem Dedina (Helena Ranaldi), que, apesar de ser casada com Elias (Leonardo Medeiros), teve um caso com Damião (Malvino Salvador). Descoberta, e uma vez perdoada, voltou a trair e foi expulsa de casa a bofetadas, pelo marido, no capítulo exibido na última quinta.
Os exemplos são fartos. Personagem de Claudia Ohana na mesma novela, a caminhoneira Cida teve um caso com o cunhado Átila (Chico Diaz), marido da irmã Lorena (Gisele Fróes). E Diva (Giulia Gam), que nos anos 80 se envolveu com Augusto César (José Mayer) e o próprio Elias (Leonardo Medeiros), quando engravidou, preferiu não revelar quem era o pai da criança e fugiu com um argentino. Os que sobraram assumiram, juntos, a paternidade.
E, ao que tudo indica, coroando o folhetim da Globo, a recatada Catarina (Lilia Cabral) vai trair o machista Leonardo (Jackson Antunes) pela bela Stela (Paula Burlamaqui), que sofre preconceitos por ser homossexual. Trata-se de um tempo que guarda suas devidas diferenças com o universo recatado do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, no qual se baseia a minissérie Capitu.
TRAGICOMÉDIA – Não se pode falar em traição feminina na ficção sem citar a definitiva Capitu, sobre a qual paira a dúvida de ter mantido um relacionamento com Escobar, o melhor amigo do marido, Bentinho. Com narrativa ambígua, o romance de Machado, que chega à telinha amanhã, na adaptação de Luiz Fernando Carvalho, apresenta o atormentado Dom Casmurro, alcunha de Bentinho quando envelhece, que deixa para o leitor a dúvida sobre a traição.
Na minissérie, que terá cinco episódios, a diretor mantém a dúvida e a associa ao processo cultural da modernidade. “Fui atrás das coordenadas mais latentes, que têm muito a ver com a questão da passagem do tempo, da consciência da finitude das coisas e do trágico também. Busquei a tragicomédia de uma dúvida, do que ela provoca em termos de imaginação”, conta Carvalho.
Ele não fez uma simples reconstituição de época. Inicialmente, pensou em gravar a ação nas ruas do Rio de Janeiro dos dias atuais. Porém, a inviabilidade de custo para esse formato de produção o levou a criar em um novo conceito. O livro foi então repensado dentro de um formato operístico, moderno e não-realista
O elenco da série – integrado, entre outros, por César Cardadeiro e Michel Melamed, no papel de Bento em diferentes idades; Letícia Persiles e Maria Fernanda Cândido como Capitu –, além das equipes de criação, participou de oficinas teóricas com profissionais da área de psicanálise, história e comunicação.
Para a psicanalista Maria Rita Kehl, o personagem é um homem inseguro da sua masculinidade. “O que é realmente enigmático para Bentinho é a sua sexualidade. Ele não sabe o que Capitu viu nele, do que ela se enamorou. E, a partir daí, a sexualidade dela passa a ser muito ameaçadora”, diz.
A médica, sexóloga, psicanlista e psicoterapeuta baiana Kleyde Lopes também reforça esta teoria: “Muito homem que não tem segurança de sua identidade sexual cria uma situação de desconfiança com a parceira para fugir do autoconhecimento sobre seu desejo”.
Ela também diz que é comum no homem ou na mulher infiel acusar a (o) parceira (o) de traição, projetando o desejo que é dele (a). “As mulheres hoje estão assumindo o direito de trair, direito este que era patrimônio masculino. O que acontece agora é que elas estão fazendo isso com mais freqüência e tranqüilidade”.
Para ela, o homem traído se sente muito diminuído e com a sexualidade afetada. “Eles tentam justificar que a traição ocorreu por interesse financeiro, mas, muitas vezes, a mulher que trai até banca o amante do ponto de vista econômico”, conclui.
RELATIVIDADE – Para o antropólogo Roberto Albergaria, “a tradicional idéia de traição ou de infidelidade tende a entrar no museu das formas de vida dos nossos avós”. Na sua opinião, “hoje é uma categoria social em extinção, que deve ser relativizada dentro do novo contexto sociocultural em que vivemos”.
Analista da pós-modernidade e das relações sociais, ele complementa que “o ideal da fidelidade extremada, um subproduto do complexo do amor romântico, do familismo católicão, revelou-se irrealista, transformando-se num estorvo ao afã de liberdade (especialmente feminina) que move nossas cabeças no mundo individualista”.
Para Albergaria, a chamada traição terminou perdendo seu sentido e charme transgressivo na medida em que se generalizou. “Ou que se democratizou com a entrada em massa das mulheres já liberadas no mercado sexual. Esvaziou-se pela própria redefinição dos nossos pactos conjugais (implícitos ou explícitos) atuais”.
“Nossos pactos não são mais de exclusividade permanente como os de outrora. São mais de afeto, cumplicidade ou, no máximo, de segurança sanitária (a Aids). Frutos de relacionamentos que já nascem conscientes da sua essencial impermanência dos nossos desejos. Relações que se estabelecem através de ajustes contínuos, de propostas condicionais”, diz .
“Mil tipos de alianças, sempre precárias, nesses tempos de amores líquidos que são os nossos. Que fazem parte do surgimento gradual de novas formas de arranjos sexuais/parentais definidas não pelo costume, mas pelos interesses individuais, que não cabem mais no modelo tradicional do pacto conjugal pré-determinado e imutável.
Para Albergaria, a multiplicação do “troca-troca”, dos “revezamentos”, das “terceirizações” (cada vez mais aceleradas) está fazendo com que a própria palavra traição esvazie seu sentido. Da mesma forma que o próprio ato de trair vai perdendo sua carga dramática.
Capitu De Luiz Fernando Carvalho Com Maria Fernanda Cândido e Michel Melamed Estréia terça, 9 Globo, 22h55
ANALISTAS SE DEBRUÇAM SOBRE INFIDELIDADE ENQUANTO FENÔMENO SOCIAL
Enquanto o antropólogo Roberto Albergaria acha que a traição perdeu o charme transgressivo à medida que se generalizou, o sociólogo Gey Espinheira acredita que o casamento é uma instituição declinante e a traição deixa de ter a conotação pérfida para ser uma afirmação do Eu feminino que se recusa a continuar a pertencer a um só homem.
Gey sinaliza que as mulheres vêm experimentando ser o que elas são com outro ou outros, sempre que a ocasião lhe facultar a aventura existencial. “Portanto, afirmação de sua vontade de potência, da liberdade que a pós-modernidade valoriza na alta invidualidade, que é a marca de nosso tempo”, analisa.
Espinheira chama a atenção para a compreensão da nossa sociedade em sua disritmia, “ou seja, os diferentes tempos que se encontram no presente”. E complementa: “Temos ainda presente grupos tradicionais, presos a valores comunitários de família e vizinhança, estruturados por relação mecânica de proximidade e conhecimento mútuo, em que as pessoas se fiscalizam reciprocamente”.
“Mas temos, por outro lado, pessoas que pertencem de fato à pós-modernidade, sociedade quase anônima em termos de comunhão de valores, constituindo uma sociedade orgânica de interdependência funcional e não emocional. Eis um primeiro quadro, mas há algo que foge quase sempre aos padrões, e a traição é um deles”.
Ele lembra que, nas sociedades de corte, como a de Versailles, a instituição do amante era generalizada, tanto de um lado como de outro. “A traição era um jogo e, na literatura de Nelson Rodrigues, este é um tema central. E agora em que se comemora o centenário de Machado de Assis, o caso mais sintomático é o de Capitu. Nas classes ociosas – a burguesia –, sexo é esporte, e por burguesia entenda-se tanto a classe média como a alta, mas a traição não é exclusividade dessas classes”.
E de onde vem, então, o suposto tabu sobre a traição feminina? Para Gey, da idéia da mulher como uma propriedade. À medida que esta apropriação declina, o que era privilégio dos homens é também incorporado pelas mulheres.
E Albergaria complementa: “Certamente, com a desconstrução da lógica simbólica da traição, as mulheres de hoje ganharam muito em liberdade e agilidade. Mas perderam algo em ardileza, nas artes do parecer (do fazer-se ‘santa puta’, no estratégico dom de iludir”.
“Por isso nossas avós, quando jovenzinhas e sonsinhas, eram mulheres tão graciosas com seus mistérios... Superiores em atratividade às ‘bad girls’ americanizadas que apareceram no momento da liberação sexual”, diz.
Do A TARDE
2 comentários:
Anderson,
muito legal! muito informativo e instrutivo.
ate
Uma das melhores obras literárias já produzida!,agora na tv. J Dean.
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