terça-feira, 11 de novembro de 2008

Flávio, um garoto carioca, interrompido

“Vai graxa?’, dizia o Flavio, ao entrar na sala, contagiando todos com sua simpatia. Bonito, pequeno, magro, negro, sorriso amplo que mostrava belos dentes brancos, com idade entre 13 e 14 anos. Assim era o Flavio. Estava no programa de Pequeno Engraxate, mantido por uma entidade com fins sociais e prestava serviço em uma grande empresa multinacional química no centro do Rio de Janeiro. Com o dinheirinho que ganhava, ajudava a mãe nas despesas da casa em Piabetá, na baixada fluminense.

Às vezes chegava cansado, pois o trem se atrasava e estava muito cheio e “eu, baixinho, não dava nem para segurar na chupeta e ficava sendo jogado de lá pra cá no vagão”, dizia ele. Transitava com toda intimidade nos 28 andares da empresa. Torcedor fanático do Botafogo, era a “deixa” para que todos mexessem com ele. Discutia com paixão qualquer lance da partida do Fogão. Só perdia elegância quando Marco, o estagiário do meu setor, flamenguista fanático (aliás, dizem que todo flamenguista é fanático, no que concordo plenamente!), bon vivant e jogador de futebol de areia da zona sul, começava a sacanear o Flavio. Esse sacava todos argumentos, mas o Marco sempre vencia e inúmeras vezes o Flavio chorava de raiva. Nesses momentos, quando as lágrimas escorriam no fino rosto negro, o Flavio se transformava no filho querido de todos funcionários do setor. “Deixa pra lá, botafoguense, esse flamenguista é maluco”, dizia alguém, enquanto Marco se esbaldava de tanto rir. Ele pegava a caixa de graxa e saía para outro andar, onde seria recebido com a mesma alegria. E o tempo passou. Flavio ficou o período determinado pela empresa e foi substituído por outro menor engraxate. Tempos depois, eis que aparece todo garboso no uniforme de exército. Estava prestando serviço militar. Para manter a tradição, foi logo perguntado como estava o Fogão, e, claro, o Marco veio sacanear o agora soldado. Após o serviço militar, aparece na empresa e uma intensa mobilização, Flavio foi admitido como mensageiro. Por ser um garoto safo, interessado e querido por todos, foi logo promovido a Boy em uma das diretorias. Dava gosto ver o progresso dele. Sempre muito bem vestido, com calça combinando com camisa, sapato com cinto, celular “manero” etc. Sempre incentivado a estudar, fazia planos para prestar vestibular. Estava motivado nas novas funções, sempre rápido, prestativo e atencioso. O tempo foi passando e aos poucos o comportamento do Flavio foi mudando. Chegava atrasado, cara de noite perdida, relapso nas obrigações e com visíveis alterações de humor. Com jeito, descobrimos que tinha mulher na jogada. Flavio estava namorando Jéssica, morena bonita, corpão, lindos cabelos negros, enrolados até a cintura. Gostava de roupas de grife, celular de lançamento. Gostava e exigia jantar e almoçar fora todos os domingos, afinal “tinha vale refeição pra quê?”. Passando o tempo, as exigências aumentaram. Agora só queria ir a motel chique e de táxi. Nada “daquela pobreza de ir de ônibus”. Exigia também presentes caros e jantar fora também no meio da semana. E o Flávio cada vez mais apaixonado pela “morenaça de fogo”, como dizia todo feliz para os colegas. O salário já não dava para cobrir as despesas. Começou a passar cheques, que o banco devolvia por insuficiência de fundos. Encontrei-o na esquina da Rio Branco com Presidente Vargas e ele pediu-me dinheiro emprestado para “comprar remédio para a mãe”. Como a performance no trabalho foi piorando, a assistente social procurou-o para conversa. Ele ouviu, ouviu e prometeu rever e refazer sua vida. Deu sinal de que voltaria a ser o menino de antes. Mas o inevitável aconteceu. A secretária deu falta de dinheiro e que uma conta particular do diretor não havia sido paga. Pressionado, chorando ele contou que estava devendo dinheiro a uma certa pessoa da comunidade da Jéssica e estava sendo ameaçado por isso. A mãe dele apareceu e pediu para dar mais uma chance. Transferiu-se então para um setor que não havia manipulação de valores. Mas não deu certo. Começou a faltar ao trabalho, a brigar com colegas, a ficar alterado por qualquer coisa. A conversa de todos era saber onde estava o doce menino, o carioca “isperrrto”, o engraxate feliz com as gorjetas. Como não teve jeito, foi desligado da empresa. Enquanto tinha dinheiro da indenização, Jessica foi a mais perfeita das namoradas: carinhosa, gostosa, fogosa e outras osas. E, claro, noitadas com muito pó e fumo. O dinheiro acabou, Jéssica sumiu. Certo domingo, na beira da linha do trem, perto da estação do Encantado, foi encontrado, em decúbito dorsal, com cinco tiros e sinais de torturas (unhas arrancadas, queimaduras de cigarro e o braço direito quase arrancado fora), o corpo de um rapaz negro, com idade presumível de 21 anos. O corpo era do Flavio e a morte foi por envolvimento com a namorada do chefão de tráfico do morro do Cachimbo, segundo a polícia. A empresa, chocada, providenciou o enterro. A mãe do Flavio esteve na empresa, agradeceu a todos pelo apoio e tentativa de salvar o filho, por ajudá-la a receber a pensão previdenciária de R$ 600,00 e disse que não chorava mais, porque já estava seca de tanta dor. Quanto a Jéssica, tornou-se uma das primeiras damas do morro do Cachimbo, pelo menos enquanto o chefão estiver vivo. E essa é a história do Flavio, um garoto carioca, interrrompido.


Cena Carioca

Dia bonito, domingo de sol, céu de brigadeiro, calor, tá dando um praião. Entra no carro, chega ao porto 9, em Ipanema e não há lugar para estacionar. Os camelôs já tinham ocupado todas as vagas da parte central da Vieira Souto com kombis, brasílias, chevetes e monzas , caindo aos pedaços, onde guardam bebidas e outros apetrechos para venderem na areia. Andou um pouco e foi até a Prudente de Morais, onde sempre tem vaga. O flanelinha, essa praga, logo apontou um lugar. Estacionou, pegou a bolsa de praia e tirou R$ 2,00 para pagar ao malandro. “Ô tia, agora é R$ 3,00”, disse o flanelinha. Ela, que não tem sobrinho, quanto mais daquele tamanho, disse: “Mas como, aumentou de preço? Sempre pago R$ 2,00”. Ele, malandramente, responde: “ Sabe como é, o dpolar subiu e a bolsa caiu. Logo, o preço mudou!”.

Nenhum comentário: