sábado, 6 de setembro de 2008

Academia do Papo



Dois poetas e eu.

Hoje acordei com sensibilidade de poesia. Como sou um poeta de produção baixíssima - bissexto, na linguagem dos literatos - resolvi lançar mão de um poeta (mais admirado como cronista) e ocupar este espaço que deveria estar preenchido por uma crônica. Faço isso com tranqüilidade porque sei o que acontece quando confrontamos crônicas de um escritorzinho municipal (eu) com a poesia de um reconhecido escritor federal. Claro que a opção será sempre letra B. 0 escritor federal, no caso, é Antônio Maria. Ou, simplesmente Maria, como lhe chamavam os amigos (dentre esses, o mais querido, Vinícius de Moraes).


É isso aí. Hoje é dia de relembrar Antônio Maria. Além de grande cronista, este artista da palavra deixou também um repertório maravilhoso na canção popular. Prá não dizerem que sou o rei das omissões, vou lembrá-los de apenas três canções [feitas por Maria] que rodaram e rodam o mundo até hoje: A primeira e mais famosa delas é Manhã de carnaval (em parceria com Luis Bonfá). Este tema foi imortalizado por ninguém menos que Nat King Cole. A segunda é Se eu morresse amanhã (gravada magistralmente por Maria Bethânia). A terceira é Ninguém me ama (a mais emblemática de todas as canções tipo dor de cotovelo já feita no Brasil e gravada de forma irretocável por Nora Nei). Deixemos o compositor e vamos ao poeta Maria. O poema era um dos que Vinicius gostava muito. Foi composto em março de 1954. O título é ORAÇÃO:

Rosinha Desossée, me tire desse quarto de hotel.
E de todas as coisas que entram pela janela;
Me leve para longe das palmeiras,
Mais longe e perto das coisas mais macias;
Me faça esquecer (depressa) os homens ruins — isto é: os que gostam de cebola crua;
Me ensine, Rosinha Desossée, tudo o que eu não aprendi:
A cortar com a mão direita, a usar anel, a tocar piano, a desenhar uma árvore e valsar;
E me lembre do que eu esqueci — raiz quadrada, (as mais ordinárias),
Frações, latim, geofísica e "Navio Negreiro", de Castro Alves;
Depois, me dê, pelo bem dos seus filhinhos,
Aquilo que eu não tenho há quase um ano, carinho —
De um jeito que eu não sei dizer como é,
Mas que há, por aí ou, pelo menos, já houve;
Destelhe a casa, deixe a noite entrar e, juntos, vamos nos resfriar;
Espirre de lá, que eu espirro de cá...
Agora, cada um com a sua bombinha, inalação, inalação;
Lado a lado, sentemos os dois de perfil para o ventilador;
Minhas mãos e as suas não são de ninguém, entendido?;
Se interesse por mim e pergunte o que eu sei,
Que eu quero exclamar, no mais puro francês:
"Oh!”... "Comment allez vous"? (...)
De um jeito ou de outro, me tire daqui, pra Pérsia,
Sibéria, pro Clube da Chave, pra Marte, Inglaterra,
Sem couvert, sem couvert;
Está vendo o retrato dos meus 20 anos?
De lá para cá, cansaço, pé chato, gordura,
Calvície fizeram de mim essa coisa ansiosa,
Insegura e com sono, que pede a você,
No auge do manso: você,
Desossée, não saia esta noite.
Fique, ao meu lado, esperando que o sono me tome
E me mate, me salve e me leve,
Por amor ao teu andar, assim seja...

Um abraço cordial e até amanhã, 7 de setembro 2008, na Avenida Integração, com parada militar e tudo.
Paulo Pires
(*) Professor UESB-FAINOR.

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