domingo, 15 de novembro de 2009

O trágico canto do bode

Por Maria Cecília De Miranda Nogueira Coelho
.
Príncipe das caatingas. Foi esta a expressão cunhada por Vinícius de Moraes para se referir ao compositor e cantador Elomar Figueira Mello, em um texto da capa do LP Das barrancas do Rio Gavião, de 1972. Por meio dela o poeta prestava reverência a este baiano de Vitória da Conquista, chamando a atenção, dentre outras coisas, para o fato da obra de Elomar retomar o “cancioneiro do Nordeste, com suas toadas em terças plangentes e suas canções de cordel, que trazem logo à mente os brancos e planos caminhos desolados do sertão, no fim extremo dos quais reponta de repente um cego cantador com os olhos comidos de glaucoma e guiado por um menino – anjo a cantar façanhas de antigos cangaceiros ou ‘causos’ escabrosos de paixões espúrias sob o sol assassino do agreste”.

Passados quase 40 anos, a singularidade e a maestria já detectadas por Vinícius de Moraes continuam presentes. Singular é, por exemplo, a utilização de uma “linguagem dialetal sertaneza”. Elomar a chama assim para distingui-la da música sertaneja, que, na sua visão é algo falso e corrompido, para atender à demanda do mercado fonográfico da indústria cultural. Em parte, para não se dobrar às injunções deste mercado é que sua obra foi quase toda produzida por selos alternativos. Sobre as características desta linguagem dialetal, trabalhos acadêmicos importantes já foram feitos, como os da pesquisadora Darcília Simões.

Aliás, já a partir de 1981, quando Ariano Suassuna orientou um primeiro estudo sobre o trabalho deste artista, a obra de Elomar tem sido, cada vez mais, objeto de investigação acadêmica nos departamentos de letras, música e antropologia, em cursos de mestrado e doutorado. Seletivo em suas viagens e entrevistas, Elomar, em meio à lida diária com seus bois e bodes, no sertão baiano, continua empenhado em sua arte musical e criação literária (é também autor de roteiros de cinema – algo paradoxal, pois é declaradamente iconoclasta – e lançou recentemente o romance Sertanílias).

Dentre os vários aspectos da obra poético-musical de Elomar, gostaria de destacar a presença de elementos que remetem à cultura grega quanto ao papel do músico. Sabemos que, pelo menos desde a Grécia Antiga, palavra poética e música estiveram estreitamente ligadas. Lembremos que o termo poeta vem do verbo poieo (fazer, produzir); poeta é um artista que produz algo, seja ele escultor, pintor, aedo ou escritor. Em geral o poeta não atuava sem o acompanhamento de um instrumento musical, que habitualmente era a lira ou o phorminx, que, aliás, dá possibilidade ao próprio instrumentista de usar a voz para recitar o poema (o que não ocorre com o aulos, parecido com a flauta, mas com o som semelhante ao do oboé, e que não permitia que músico falasse enquanto tocasse – sendo considerado por autores como Platão e Aristóteles um instrumento inferior à lira, já que impedia o homem de se expressar pela palavra, logos).

Também o teatro (seja tragédia, comédia ou drama satírico) era acompanhado por música, e se hoje, aristotelicamente, o estudamos apenas por meio de leitura e análise de texto, não devemos, no entanto, esquecer da importância da música na constituição da peça teatral (aliás, no caso da tragédia lembremos que este termo remete ao canto, ao bode e/ou canto do bode, animal, como o touro, da esfera do deus Dioniso).

Se o próprio Elomar é um cantador, sempre performático em suas aparições (acompanhado de seu violão), o tópos do velho cantador é também recorrente na sua obra, aparecendo em canções como Canto do Guereiro Mongoió, O violeiro, O pidido, Puluxias, Peão de amarração, Casa dos carneiros, etc... Este cantador-narrador aparece muitas vezes como cantador cego, reverberando a imagem homérica (além do próprio Homero, lembremos de Demódoco, aedo na corte de Alcínoo), trágica (recordemos Édipo a furar os olhos para ver o que o cego Tirésias já vira) e mesmo platônica, de que o verdadeiro saber é dado aos que não veem com os olhos do corpo, mas com os da alma. Particularmente significativa é a canção História dos vaqueiros, no disco Cartas Catingueiras, que começa estabelecendo o canto do narrador como modo de homenagear – e não deixar cair no esquecimento – os feitos de grandes vaqueiros: “Mais foi tanto dos vaquero qui rênô no meu sertão qui cantano um dia intêro num menajo todos não.” Após relembrar o nome de alguns dos vaqueiros famosos, cujos feitos podem ser vistos no âmbito do universo heroico, é narrada a trajetória de um deles e, após sabermos de sua peleja, que termina com a vitória do homem sobre o boi: “certa feita vô contá só um feito desse vaquêro foi chamado pra pegá um levantado marruêro [.....] pelos mistero da hora in qui nun pode havê êrro [...]faca na venta saingue no chão e a lua omenta o quilarão faca na venta e boi no chão.”

No entanto, para o vaqueiro há um perigo – uma falha trágica ou hamartia, para utilizarmos o termo clássico, discutido por Aristóteles na Poética. No caso, no universo elomariano (que é também cristão), ele se manifesta na figura da “moça perderera”, um análogo de Eva. Essa “moça bunita”, “laço de amô”, que por um momento distrai a atenção do vaqueiro, causa sua ruína no ínfimo de “um olhar”. Semelhante ao boi, ela é um desafio ao herói-vaqueiro: “facilitei olhei voçe foi pur teus olhos pur a fulô pegava o boi, boi me pego”. Este exemplo de narrativa, que mesmo com suas elipses é de caráter épico, traz uma imagem muito importante, a do boi. Não é um boi qualquer que desafia o vaqueiro, mas um boi especial (variação da luta entre o Minotauro e Teseu?), como aparece no título da canção Boi encantado, que tem lugar de destaque na peça sinfônica Sertania, parceria de Elomar com Ernest Widmer.

Curiosamente, esta canção faz parte do último movimento da sinfonia, chamado Catarse, conceito-chave na teoria da tragédia que herdamos de Aristóteles, e a capa deste disco, lançado em 1985 é, também, indicativa de uma situação de algum modo trágica – temos um desenho no qual as cabeças do homem e do animal se misturam (como já dissemos, o touro era uma das epifanias de deuses importantes como Zeus e Dioniso). A sinfonia foi composta como trilha de um respeitado filme, Boi Aruá, longa-metragem de animação dirigido por Chico Liberato. Neste contexto, o boi (ou touro) é, para Elomar, tanto símbolo da luta dos vaqueiros, refletindo um traço cultural e social de vida do sertanejo, como metáfora da luta do homem consigo mesmo, na sua travessia neste mundo tentando dominar uma parte sua rebelde, animalizada. Assim, desafios aparecem tanto dentro da estrutura do gênero tradicional de música em que cantadores lutam por meio de palavras (uma performance agonística como a do teatro grego, frente a um público popular), como na estrutura épica, lutas de heróis entre si ou contra forças da natureza, representada por animais. Desafios, na obra de Elomar, parecem ser também, no âmbito trágico, aqueles do homem consigo mesmo, de sua alma imortal com seu instinto, muito próximo da rebeldia irracional do animal, suas paixões e sua desmedida (hybris). No desenho Boi Aruá, por exemplo, é muito significativo que o vaqueiro egoísta, na sua longa jornada para buscar um boi encantado, ao capturá-lo o veja metamorfosear-se de touro negro em bezerro branco, e ao domá-lo, qual esfinge assustadora, doma a si mesmo, transformando-se em homem solidário.

Sem dúvida, na obra tão regional de Elomar, o cenário da caatinga potencializa as dificuldades da travessia, real ou metafórica, que dá sentido à existência humana. No entanto, esta travessia, se não for cantada e contada pelo narrador, se perde; daí a necessidade da obra artística, como instrumento de memória e de aprendizagem. O homem é esse ser errante, de Odisseu, navegante, ao vaqueiro “cavandante”, a caminhar “pulas istrada do mundo”. Para Elomar, contrariando a crítica da pós-modernidade ao “sujeito universal”, há uma essência humana imutável e trágica. Nesta perspectiva, ele parece alinhar-se a autores como Karl Jaspers, os quais trabalham com a categoria de trágico, que, diga-se de passagem, não se esgota na tragédia. Lembremos que a teoria da tragédia está ligada à produção de paixões (pathe) e a personagens que padeceram de maneira radical. Mesmo sendo arriscado fazer generalizações, diria que a tônica dominante do cancioneiro elomariano é uma travessia e labuta dos personagens pelo sertão e cidade, epifania do padecimento divino e mesmo metáfora de jornadas existenciais, relatadas na voz de um cantador, que, por sua vez, é tanto o próprio músico, Elomar, como também, personagens que ele cria. O cantador, ao narrar as desventuras e mesmo a morte, eterniza o que é demasiado humano, bem como a impossibilidade de se fugir do destino, pois mesmo a resignação parece estar envolta em certa sensação de abandono, de um homem-Sísifo que tem de tirar de si mesmo o alívio para sua dor, como a esperança de harmonizar o divino e o humano, no cenário tão dramático da vida sertaneja, algo sublimemente sintetizado nos versos de Corban: “Sol num seca meu pranto qui é preu refrescá meus péis.”

MARIA CECÍLIA DE MIRANDA NOGUEIRA COELHO * Pós-doutoranda no Núcleo de Estudos Antigos e Medievais da FALE/UFMG

2 comentários:

Anônimo disse...

...,tá montado no bode,qual a informação?.

PAULO PIRES disse...

Belo texto da Professora. O Elomar é um ímã que mistura a secura dos sertões com as sonoridades verdes da imaginação. Seu canto, telúrico, metafísico e messiânico, infelizmente não dá pra maioria de um povo que tem na televisão o "produto feito". Elomar é um obreiro da reflexão. Um mago diante dos segredos e uma sonoridade diferenciada que brota da jurema e da gameleira. É um canto extraordinariamente belo e bem trabalhado para quem não tem a leitura pelo menos natural da vida. Salve Elomar das capas de cangaia véia. Cujo acalanto suplica para que o Sol não seque o seu pranto, pois precisa refrescar os pés. É muita poesia para quem gosta de televisão.

Paulo Pires