sábado, 15 de agosto de 2009

Entrevista com Elton Backer


Confira a entrevista do radialista, historiador e músico Elton Backer, concedida a alunas do Colégio Sacramentinas.


1. O racismo, teoricamente, é uma idéia ocidental (européia) excludente que versa sobre a universalização do conceito de humanidade e é fruto do século XIX. Mas, na prática, é um coadjuvante na história da humanidade, e no Brasil não se faz diferente desde a chegada dos portugueses. De que forma a sociedade brasileira foi vitimada pelos europeus do ponto de vista social?
Inicialmente, eu agradeço pela escolha do meu nome para participar desta entrevista e parabenizo a professora Salete Aragão pela iniciativa. São ações como esta que ajudam no debate sobre uma das questões mais importantes para consecução da cidadania plena e dos direitos políticos, além de contribuir para a nossa cultura política.
Quanto à pergunta de vocês, eu, inicialmente, faço a seguinte observação: o século XIX apenas forneceu os elementos pretensamente científicos do racismo, em especial, ao postulado da superioridade branca sobre a inferiorioridade negra. E, uma vez que a sua pergunta se refere também a Portugal, é preciso pensar esta questão ainda antes, desde os anos de 1450-1500, pelo menos. Assim, eu diria que a sociedade brasileira foi marcada pelos europeus decisivamente desde os primeiros contatos da Europa com a África e as primeiras tentativas dos teólogos medievais em definir a cor que distinguia os negros dos brancos. Afinal, isto era estranho para eles e pedia explicações.
A partir daí, os teólogos judaico-cristãos começaram a fazer questionamentos desse tipo: “Teriam os negros pele escura por conta da influência do sol?”; “Seriam os negros tão escuros por sua descendência de Caim, que teve sua face enegrecida por Deus após matar Abel?”; “Seria por causa da água e do alimento?”. Um outro argumento teológico muito usado se refere ao episódio descrito no livro do Gênesis (9, 21-27), em que Noé fica bêbado e um de seus filhos, Cam, surpreende o pai nu e chama o restante da família para ver a nudez do pai, ou seja, para “bater uma resenha”, com a gente diria hoje. Depois disto e já sóbrio, Noé fica muito chateado ao saber o que aconteceu e amaldiçoa Cam como “o último dos escravos”. A partir daí, muitas vezes, a escravidão dos negros foi justificada sob o signo da “maldição de Cam”.
Posteriormente, ao longos dos séculos seguintes, a distinção entre negros e brancos se torna cada vez mais larga. Como exemplo disto eu me lembro de Jean Leon, um viajante francês do séc. XVI, que escreveu: os negros “são brutos, sem razão, sem inteligência e sem experiência. Eles não têm absolutamente nenhuma noção do que quer que seja. Eles assim vivem como bestas, sem regras e sem leis”. Deste modo, como diz Gislene Aparecida dos Santos em seu livro A invenção do ser negro, a África seria, assim, uma terra do pecado e imoralidade, gerando homens corrompidos; povos de climas tórridos, insuportavelmente quentes, com sangue fervendo e paixões anormais que só sabem vadiar e beber.
Todavia, é bom lembrar que desde a chamada Antigüidade Greco-Romana, a África era considerada “a porta para o inferno”. [Heródoto, o chamado pai da história escrevera algo assim ⎯ Salete deve se lembrar disto].
No Brasil a distinção entre negros e brancos segue os mesmos matizes. o mesmo sentido. Tomemos o exemplo do patriarca da Independência, José Bonifácio. “Se os negros são homens como nós”, dizia Bonifácio, “e não formam uma espécie de brutos animais, se sentem e pensam como nós, que quadro de dor e de miséria não apresentam eles à imaginação de qualquer homem sensível e cristão?”. Ora, aí estão os mesmos argumentos, os mesmos argumentos da diferença imposta pelos europeus aos africanos.


2. O racismo é acompanhado de uma série de idéias pré-concebidas sem a menor base de apoio aos fatos históricos nem razões coerentes ou ética humana. No entanto, encontramos o seu “fundamento teórico” na obra de Gobineau e Alfred Rosemberg, a qual foi convertida em programas políticos em países com na Alemanha nazista e mesmo na África do Sul com o Apartheid. Estes sistemas de segregação racial ainda influenciam mentalidades ou simplesmente indignam a todos.
Curiosamente vocês me falam de Gobineau e de Rosemberg, porém há-de se dizer que não foram apenas as idéias destes dois teóricos que influenciaram e ajudaram a ampliar preceitos racistas. As idéias da discriminação, naquele momento, eram várias e variadas. Assim como havia tantos autores, tantas “mentalidades” foram criadas. E aqui estão os maiores problemas, porque as mentalidades são de longa duração e quando elas se referem ao preconceito racial parece que se tornam ainda mais demoradas.
Há um provérbio africano que diz: “O preconceito é um espinho demasiado fino; é difícil arrancá-lo!”. Infelizmente, ainda hoje estes tais sistemas de segregação ainda influenciam as pessoas. Veja-se o exemplo dos pitboys ⎯ o nome é a fusão do cão ferozíssimo pitbull com boy, rapaz em inglês. Normalmente, estes rapazes são de famílias de classe média das grandes cidades, praticam lutas marciais e se exercitam dando porrada em pessoas inocentes, geralmente negras, pobres ou homossexuais.
E, como se isto não bastasse, ainda temos os skinheads e outros grupos neonazistas, ambos ligados às idéias de intolerância e de preconceitos racialistas. Eles, além da discriminação de grupos específicos, tais como judeus, índios, negros e homossexuais, ainda tentam negar ou minimizar os efeitos do Holocausto nazista contra os judeus, durante a Segunda Grande Guerra Mundial.
Por tudo isto eu penso que, mais do que indignação, precisamos de medidas efetivas de combate e de justiça contra estes grupos e suas ações correlatas. Pois ainda hoje temos de conviver com grupos extravagantes e chocantes como a Ku Klux Klan, que defende uma supremacia branca e um tipo específico de protestantismo nos Estados Unidos.


3. Há comprovação científica da semelhança genética entre os homens em cerca de 99,9%, o que desmascara o racismo que se sustentava há séculos com base em diferenças físicas. Tanta igualdade destroça a inferioridade propiciada pelo racismo, mas pode descaracterizar os homens?
Veja, eu não sou nada bom em biologia, porém, compreendo que o homem é tão somente um animal, decerto diferenciado pela inteligência, mas ainda assim um animal, que chegou à sua forma atual devido ao evoluir de outros ancestrais mais primitivos. E por quê estou fazendo esta digressão? Ora, o fato de pertencermos a mesma rede ancestral não nos faz melhores que aqueles que vieram antes de nós, isto é, não nos torna especiais nem distintos.
As diferenças que foram estabelecidas foram intelectuais e não genéticas, observe que os estudos de craniometria feitos pelo Nina Rodrigues, legista e antropólogo brasileiro do século XIX, para demonstrar suas teses racistas e ‘cientificamente modernas’, hoje fazem parte apenas da história (diria até do folclore) da medicina legal e do direito no Brasil. Nina Rodrigues chegou a defender que o país deveria ter dois códigos penais: uma para os brancos e outro para os negros. E quem teria coragem defender isto hoje em dia, um disparate destes? Seria ridicularizado, certamente.
Mas, vocês me perguntam: “Tanta igualdade destroça a inferioridade propiciada pelo racismo, mas pode descaracterizar os homens?”. Não creio. Pois na história intelectual, no percurso das idéias, das nossas sociedades, percebo como as idéias de distinção, discriminação e segregação racial e social foram sendo construídas e ainda por cima o legado tenaz destes preconceitos ainda hoje.
Vocês conhecem na mitologia grega a Hidra de Lerna? É um animal fantástico com corpo de dragão e várias cabeças de serpente que se regeneravam. Assim, cada vez que se cortava uma das cabeças surgia outra em seu lugar de hálito ainda mais venenoso. Infelizmente, atestam alguns historiadores, a hidra do racismo ainda continua presente. Todavia, não creio na descaracterização dos homens diante desta afirmação que vocês fizeram ⎯ da comprovação científica da igualdade genética. Como disse antes, minha formação em biologia é quase nenhuma, todavia somente a inépcia, a inabilidade, confunde o racismo e a genética, como bem escreveu o biólogo norte-americano Richard Dawkins.


4. O Art. 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 1948, versa sobre a igualdade de todos independentemente de cor, sexo, renda econômica, etc., ‘impede’ que a segregação sócio-racial prevaleça nas sociedades. Entretanto, não passa de teoria, uma vez que a segregação continua a se manifestar de modo aberto ou mesmo sutilmente observado. Cite um exemplo que demonstre a prática deste crime.
Tomemos por exemplo o Brasil. Aqui, a discriminação tem por base o desconhecimento e o preconceito. Assim, embora as raízes étnicas do Brasil sejam, em larga medida, africanas, o desconhecimento em relação ao continente faz com que proliferem visões estereotipadas e preconceituosas sobre a África. Para que vocês tenham uma idéia clara o suficiente do que estou falando, citarei algo que ocorre em nosso meio acadêmico, universitário.
No Brasil há apenas uma universidade que tem em seu currículo uma disciplina que trata da literatura africana, que é a Faculdade de Letras da UFRJ, a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ou seja, parece que na África não existe produção intelectual literária. E como se isto não bastasse, não é raro as pessoas perguntarem se vão discutir uma “literatura de tambor” ou se vão falar da questão do negro ou de “macumba”, isto foi o que me disse a professora da UFRJ, Carmem Tindó. Para mim isto é um crime contra a memória e contra a arte da África.
Agora, vocês falaram em algo sutilmente observado, não foi isto? Então, eu aproveito para fazer a seguinte provocação: vocês duas já ouviram falar na Lei nº 10.639? Bom, é a lei que torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira em todas as escolas, públicas e privadas, de ensino fundamental e médio. Segundo o texto que foi aprovado, creio que em 2003, busca-se o resgate da contribuição do povo negro à História do Brasil. Então pergunto, a escola de vocês já adotou esta lei? De que forma foi (ou está sendo feita) a implantação da lei? Há algum destaque específico à História e a Cultura Afro-Brasileira ou os conteúdos estão imersos em outras áreas? São algumas questões para vocês levarem à escola...
5. Deixe sua mensagem sobre a desigualdade entre as etnias e cite as vantagens do Brasil em possuir uma diversidade étnica e cultural tão abundante.
Como mensagem, eu deixaria o seguinte Orikí (um tipo de verso sagrado africano): “Exu matou um pássaro ontem, com a pedra que jogou hoje”. É preciso ter cuidado com o nosso passado, principalmente quando estiver em jogo questões de tolerância. Eu insisto nisto porque, segundo um historiador inglês muito famoso, Eric Hobsbawm, o século XX terminou sob o signo de o mais “o mais violento dos séculos”, o mais intolerante. Infelizmente, a intolerância não pára de crescer, mesmo depois de abandonadas aquelas cruéis fórmulas totalitárias, que você já devem ter estudado, eu creio, nazismo, fascismo, integralismo. E mesmo com a economia global gerando novas acessibilidades, o fato é que a intolerância assumiu novas formas, intolerância religiosa, intolerância racial ou intolerância étnica. Há um poeta que diz que hoje em dia falta realizar a educação para a tolerância.
Mas a pergunta de vocês falava também sobre a vantagem da diversidade étnica e cultural do Brasil, e, já que eu falei em poesia, me permitam terminar com a música de Arnaldo Antunes, “Inclassificáveis”.
(...)
aqui somos mestiços mulatos
cafuzos pardos mamelucos sararás
crilouros guaranisseis e judárabes

orientupis orientupis
ameriquítalos luso nipo caboclos
orientupis orientupis
iberibárbaros indo ciganagôs

somos o que somos
inclassificáveis

(...)
egipciganos tupinamboclos
yorubárbaros carataís
caribocarijós orientapuias
mamemulatos tropicaburés
chibarrosados mesticigenados
oxigenados debaixo do sol

Enfim, somos o que somos. É preciso discutir isto seriamente, como vocês estão se propondo agora, para, finalmente, a gente compreender e assimilar o preconceito como negativo e, assim, quem saber, ir derrotando e arrancando as cabeças da Hidra, como fez o Hércules.
Mais uma vez, muito obrigado a vocês, Gabryela e Bianca, pela oportunidade desta conversa e levem os meus cumprimentos à professora e colega de História, Salete Aragão.

Um comentário:

  1. Se fosse possível uma sítese fídedigna de toda a história do ser humano no planeta Terra.Concluiríamos;os chefes,réis,imperadores etc,.Sempre utilizaram-se de teorias, em que os mesmos e seus asseclas eram considerados seres superiores aos demais.No Brasil,recentemete,uma autoriedade conclamou a qualidade de INCOMUM.a um de seus aliados - Em defesa das suas atitudes anti- constitucionais!.Como pode verificar,as "cabeças de hidras", atuais, também evoluiram e continuam evoluindo!.Tornando-se até mesmo imortais!.Indestrutivéis!.RGS.

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