domingo, 31 de maio de 2009

Nos bastidores do lar, intimidade


Na vida real, histórias de amor e cumplicidade entre patrões e empregados são mais comuns do que se imagina

Nos bastidores do lar, intimidade, Zero Hora

No clássico da Walt Disney de 1964, ela desce de uma nuvem com seu guarda-chuva mágico e deixa os pequenos Michael (Matthew Garber) e Jane (Karen Dotrice) fascinados, pois é exatamente a babá que as crianças sonhavam ter em casa. Mary Poppins (Julie Andrews) é mesmo encantadora com suas doces canções, brincadeiras e atitudes afetuosas. E não é apenas no cinema que babás e empregadas domésticas se relacionam de um jeito íntimo e especial com as famílias que escolheram para cuidar.


Aline Adami Rosa tem 21 anos, mas logo que nasceu encontrou sua Mary Poppins. Ela não caiu de uma nuvem, como na história do cinema, mas há 30 anos bateu na porta da família em busca de trabalho. Hoje, Anelita de Oliveira Santos tem 63 anos e construiu uma relação de amor incondicional com a jovem, que perdeu a mãe quando tinha apenas um ano de vida. Embora tenha sido contratada como empregada doméstica, bem antes de Aline vir ao mundo, Anelita sempre foi a babá da casa.

Atualmente, as duas moram sozinhas. Dividem um apartamento em Joinville. Aline recebe uma ajuda financeira do pai e Anelita ajuda com o salário de arrumadeira que recebe num salão de beleza. Neste lar, ela também cumpre o papel de mãe. O pai de Aline mora em São Paulo, mas ela não se adaptou à vida na capital paulista. Preferiu ficar com os mimos da babá, que chama carinhosamente de Ita. Para a jovem, Ita, agora já com cabelos grisalhos, é muito mais do que uma empregada. É para ela que são entregues, todos os anos, as flores do Dia das Mães.

É ela quem ampara as dores de Aline, desde os machucados de criança às primeiras decepções na adolescência e na vida adulta. A lista de episódios marcantes é imensa. Houve um trágico – hoje cômico, segundo elas – em que Aline, ainda pequena, saiu de bicicleta para comprar uma flor para Ita. “Ela caiu e chegou em casa toda suja, machucada e com a bicicleta quebrada. Chorando, me entregou uma rosa com os galhos quebrados e quase sem pétalas. Eu não sabia se pegava a flor ou se acudia ela”, recorda Anelita, que ainda se mostra jovem ao conviver no ritmo da “filha”.

A convivência entre as duas sempre foi marcada por demonstrações de carinho e zelo. “Uma vez, ela quebrou a clavícula e não conseguia dormir com o gesso. Então dormi com ela no meu colo durante 15 dias”, recorda Ita. Com o coração derretido de mãe, também escondia do pai de Aline as peripécias da menina na infância. “Quando eu não queria almoçar e meu pai obrigava, eu colocava minha comida no prato da Ita e ia direto para a sobremesa”, conta a jovem.

Hoje, a cumplicidade parece ainda mais forte. “A vida inteira ela me deu apoio em tudo, cuidou do meu pai e cuida de mim. É minha amiga, minha mãe, minha companheira”, define a garota, que sempre que chega em casa conta para Ita tudo o que aconteceu durante o dia. Ita também confirma a dependência. “Para mim, ela é fundamental.” E o desejo é de seguir a vida tomando conta da filha de coração. “Se eu tiver forças também vou cuidar dos filhos dela”, avisa.

Essa relação de amor e cumplicidade teve início há 30 anos, quando Anelita arrumou a mala, despediu-se dos pais, deu um beijo no filho de cinco anos e partiu de Vitória da Conquista, na Bahia, para São Paulo. A mulher camuflou a saudade atrás dos olhos negros, os mesmos que ajudam a reforçar sua fala até hoje. “Eu tive a vontade de aventurar minha sorte em outra vida.” Naquela época ela não poderia prever que, além do trabalho de doméstica, ganharia uma nova família, uma filha e até um novo nome: Ita.

As histórias das duas se cruzaram quando Anelita bateu de porta em porta até encontrar emprego como doméstica na casa de Humberto Rosa e Lurdes Martins Rosa, avós de Aline. Anelita foi morar com eles e começou a cuidar das tarefas do lar. Instalou-se na casa faltando uma semana para o Natal e, em poucos dias, cativou Humberto, Lurdes e seus quatro filhos – Eloísa, Carmem, Luíz Humberto (pai de Aline) e Ricardo.

A comunicação com os parentes da Bahia era por meio de cartas. Só assim conseguia ter notícias do filho. Mas de solidão, Anelita nunca sofreu. “Tem gente que não trata a família de sangue assim como me trataram”, recorda.

Além de lavar, passar, guardar, limpar o chão, arrumar a casa e lustrar os móveis, também cuidava do almoço, dos horários dos jovens, da bagunça e da rotina do lar. “Era como se fosse uma governanta, fazia de tudo”, conta Ita.

Quando Luíz Humberto mudou de emprego, casou-se com Márcia Adami e veio morar em Joinville, Ita se mudou também. Na mesma época, Humberto (o avô) se aposentou e comprou um apartamento na cidade. Ita tornou-se disputada. Tinha que administrar os dois apartamentos em Joinville e a casa em São Paulo. Ela não se queixa do tempo de muito trabalho e viagens.

Foi nesta época que nasceu Aline, um neném de cabelinhos escuros e traços do olho e da boca parecidos com os da mãe. A alegria dos pais misturou-se à preocupação natural em relação aos cuidados com o primeiro filho. Mais uma vez, Ita foi fundamental ao ajudar com o banho, as fraldas e os remédios.

Certa de que tudo estava sob controle, voltou a São Paulo para cuidar de Eloísa, uma irmã de Luíz que estava doente. Meses depois, Márcia estava novamente grávida. Tudo corria bem até Ita ser chamada em Joinville. “Márcia faleceu”, dizia a voz embargada do outro lado da linha.

“Era inacreditável, ela estava grávida de seis meses e não tinha problemas. O Luíz ficou inconsolável.” Ita ficou para cuidar de Luíz e de Aline. A partir daquele momento, não conseguiram mais se separar. Luíz teve de voltar para São Paulo em função do trabalho e Aline, que já ía para a escola, ficou com Ita em Joinville. Nesta época a avó Lurdes faleceu de infarto e o avô Humberto voltou para São Paulo. Ficaram só as duas na cidade.

Em 21 anos Aline separou-se de Ita uma vez, quando tentou morar com o pai em São Paulo. Neste período, Ita voltou a Bahia para rever o filho e cuidar do pai, que estava doente. Mas as duas não se adaptaram. Depois de muito choro e saudade, voltaram a morar juntas.

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